Conto de fadas: em seu sentido etimológico, “conto” trata-se de uma contagem ou suposição que adquiriu o sentido de narração. Concatenado ao “de fadas”, nos traz o sentido de uma fábula ou história antiga (que pode ser ou não baseada em um acontecimento real), passada de geração em geração para ensinar valores e dar lições de moral.
Contos de fadas podem e, com certeza, são modificados com o passar das gerações. Cada um que ouvia a história lá no início após sua origem passava a mesma para seus filhos. É óbvio que muitos alteravam a estória de acordo com suas necessidades criando dessa forma muitas outras versões. Algumas dessas versões faziam fama, se tornavam livros e serviam de inspiração para outras estórias que se distanciavam cada vez mais da original.
Perdoem-me pela introdução meio chata, mas finalmente cheguei ao ponto que queria e daqui não enrolarei mais. Recebi recentemente um e-mail de uma fonte anônima. Neste e-mail, a fonte dizia que sua família carregava uma versão mais realista e interessante de um desses contos. Deixarei com vocês o papel de decidir se ela se aproxima mais da origem do conto ou não. A versão que recebi estava em primeira pessoa e isso me fez supor que ela era passada pelas pessoas sempre em formato de texto. Sem mais delongas, aqui vai a versão do anônimo.
“Era noite e nuvens cobriam o céu. Apenas o clarão ofuscado da lua e uma luz amarela que se movia trêmula no horizonte iluminavam a paisagem. Não vejo nenhuma estrela, apenas o breu absoluto e infinito. Meus pés descalços sentem a grama gelada e macia da clareira e as formigas que fazem cócegas nos meus dedos. Entre algumas árvores eu vejo um caminho de terra, contornado por alguns cogumelos e galhos velhos. Minha irmã toca meu ombro e aponta para o outro lado, para a velha cidade de madeira com uma fogueira gigante iluminando os céus anunciando algum festival. Sinto-me tentado a voltar para casa, mas aquele caminho me despertava a curiosidade. Eu não voltaria atrás agora, afinal, é só ver para onde o caminho leva e em seguida voltar para casa.
Olho para Maria e tiro a mão dela de meu ombro. Seguro ela pelo braço e suplico com os olhos para que ela me siga. Minha irmã bufa e olha para baixo deixando claro que consegui o que queria. Sem hesitar ou ao menos sentir pena por ela, eu largo o braço de Maria e ando com passos lentos para fora da clareira em direção ao caminho de cogumelos, galhos e terra.
Minha irmã me segue silenciosa e apenas o barulho de grilos e nossos passos colorem o ambiente sonoro. Ao dar o primeiro passo para fora da clareira, sinto a terra morna entre meus dedos e ouço alguns galhos sendo quebrados pelos passos de Maria. Seguimos o caminho lentamente, sendo cobertos pelas árvores e perdendo a visão do céu. A visão da clareira vai se despedindo por entre as árvores, troncos e arbustos. Sei que não vou me perder, o caminho de terra estava gravando nossas pegadas por onde andávamos. Meu pai nos ensinara isso: se nos perdermos na floresta é só seguir as pegadas que apontam pelos calcanhares. Minha irmã segura em minha mão esperando obter mais segurança e coragem. Aperto a mão dela com firmeza para passar um pouco do que ela precisa e a puxo para dentro da floresta apertando meu passo.
Conforme o tempo passa, a curiosidade vai perdendo o atributo incentivador e a fome me faz considerar voltar. Após alguns minutos, eu sinto uma gota cair em meu ombro e isso é um sinal de que temos que voltar o mais rápido possível. Olho para Maria e vejo que ela está assustada. Provavelmente ela já entendeu a situação em que nos meti. A chuva chega e vejo nossas pegadas se desfazendo na terra que agora virava lama.
Como se fosse algum tipo de pegadinha divina, a chuva logo vai embora. Parecia que tinha vindo apenas para nos fazer perder a calma e a direção de volta para casa. Eu e Maria nos sentamos em um tronco, e sentimos a barriga roncar. Não me lembro de já ter sentido tanta fome. Provavelmente perdemos a noção do tempo durante nossa caminhada. Pego alguns dos cogumelos do chão e dou uma mordida. Eles não se pareciam nada com cogumelos venenosos, mas eu como primeiro para ver se tem algum risco para minha irmã. Os cogumelos não estão muito bons, mas meu corpo não reage negativamente a eles. Eles apresentam uma coloração meio marrom e um gosto um pouco enjoativo, mas nada que não mate a fome. Dou alguns para Maria e ela os come ferozmente. Então a fome vai embora e decidimos continuar a trilha.
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Está de noite, sou acordada por algum barulho que vem de fora do meu chalé. Ouço crianças chorando e batendo na porta da minha casa. Levanto-me, coloco as pantufas e ando com passos pesados para atender os pestinhas. Tomo um susto quando abro a porta. Vejo duas crianças chorando e com os dentes sangrando. Pedaços de madeira que provavelmente foram parte da minha casa estão jogados no chão e cheios de marcas de mordida. As crianças correm para dentro do chalé, comendo tudo o que estava dentro da minha despensa. Eu as deixo comer e corro para a janela. Fico alguns segundos encarando a floresta, e decido gritar para que alguém me ouça, qualquer pessoa, eu precisava avisar que acabei de achar duas crianças que provavelmente fugiram da cidade e estão acabando com tudo o que tenho. Se alguém tiver ouvido, a ajuda deve chegar em aproximadamente uma hora, pois a cidade está parada por causa de uma festa de casamento e a chuva fez a região em que moro impossível de se atravessar.
Bato no parapeito da janela. Frustrada e me lembrando do problema que tenho bem atrás de mim. Olho pelos ombros e vejo o garoto mordendo o pé de uma cadeira, a garota que estava com ele está chorando no canto da sala. O garoto pula para cima de mim, tentando me morder, então eu atiro ele para dentro do meu quarto e tranco a porta. O menino começa a bater na porta, chorando e gritando por comida.
Sei que muitas pessoas não fariam isso, mas otária do jeito que sou, decido preparar algo para as crianças comerem. Não sei há quanto tempo estavam perdidas, mas estão tão desnutridas que o mindinho do garoto parecia um osso de galinha. Ligo o fogo do forno que eu costumo usar para preparar os doces para a minha franquia e deixo-o esquentar. Enquanto isso, eu pego um pão de anteontem e jogo para a garota com medo que ela me ataque. A garota come o pão como se fosse o primeiro prato de uma ceia de natal. Logo em seguida, ela chora pelo irmão que bate com todas as forças na porta do meu quarto.
Abro a porta e jogo um pão para dentro, fechando-a em seguida. Dessa vez eu não tranquei a porta na esperança de acalmar a criança. Abro o freezer da geladeira e tiro um frango congelado e pronto para ser assado. Abro o forno e fico de joelhos para botar o frango para assar. Choro em desespero sabendo que as crianças devem estar tão desesperadas quanto eu. Ouço a porta do meu quarto abrindo e sou empurrada para frente. O fogão fecha.”